terça-feira, 26 de abril de 2016

Capítulo 1 - Intermitências do sonho

Acordo. Procuro novamente o despertador. Vejo que novamente são três da manhã. Mais uma noite a acordar por volta desta infame hora. Que mal fiz eu? Porque tenho de acordar? Porque não posso dormir? Vivo agitada nas intermitências dos meus sonhos. O arrependimento conquistou a minha alma. Vivo inquieta com a cama vazia por não o ter comigo. Não consigo dormir. Sinto falta. Falta de tudo. Do olhar. Do abraço. Da cama quente. Dos corpos suados envolvidos um no outro. Dos lábios. Da amizade. Sinto falta dele.
São várias as noites que me pergunto o porquê. Porquê? Estou inquieta. Não me sinto em paz. Culpo-me pelo resultado. Culpo-me porque podia ter feito mais. Podia ter aguentado. Podia não ter gritado. Podia ter-me entregue mais vezes. Agora que não o tenho... sinto a sua falta. Sinto falta do erotismo... sinto falta da sensualidade... sinto falta quando os seus lábios percorriam o meu corpo e me diziam "eu sou teu". Como eu quero ser tua... Ainda sinto que sou tua! Sofro de arrependimento por tudo o que correu mal. Culpo-me por tudo que não fiz para te ter. Para continuar do teu lado. Para te amar... mais. Quero voltar a sentir. Quero voltar atrás!
Procuro o telemóvel porque preciso de ti. Onde estão as tuas mensagens? Onde está a vontade de me conquistar? Juraste ficar do meu lado, prometeste envelhecer comigo... porque não cumpriste as tuas promessas? Teria dado tudo por ti. Tudo! Teria-me entregado de corpo e alma. Teria-te saciado a fome sempre que quisesses. Teria sido a tua mais que fiel e leal amiga e companheira. Amante. Amante arrebatadora. Mas agora... agora vivo na intermitência do sonho. Não durmo... não como... sinto a vida em suspenso!
Condenaste-me a viver fora de mim própria. Não encontro forma de continuar em frente. Sofro amargamente. Sofro por ti. Pelas tuas lembranças. Sofro porque não tenho aquilo que quero. Só quero poder voltar atrás. Só quero voltar a tocar-te... A passar a mão pelos teus cabelos. A tocar as tuas costas com o meu peito. A cruzar as minhas pernas sobre o teu corpo. A prender-te junto de mim. Quero ser tua. Quero todas as promessas não cumpridas. Quero que voltes. Quero que voltes para mim. Anseio por ti. Todos os dias... em todas as horas... quero tanto ter-te do meu lado. Preciso tanto do toque da tua pele... Quero-te. Quero-te para poder dormir. Quero-te para me sentir completa. Quero-te para me sentir feliz. Viva. Confiante comigo mesma! Dá para entender o quanto sofro por ti? O quanto a tua ausência me destruiu? Quem és tu para teres o direito de me deixar? Quem és tu para teres o direito de me sentenciar? Decides que acabou e acabou mesmo? Decides que queres partir e partes mesmo? Não prometeste que estaríamos juntos para sempre? Não prometeste que eras meu? Só meu? Porque foges então? Cobarde! Porque não respondes? Mentiroso! Traíste-me! Traíste-me!!! Levaste o melhor de mim... Quiseste dar-me tudo e nada me deixaste... Porque me traíste? Porquê!?!? Porque não foste capaz de te despedir? Nem um último beijo... Nem uma última palavra... Porque foste tu tão cruel? Porquê eu... Porquê?
O tempo passa... o relógio tem fome de mim. Da minha alma... Vivo com a mais amarga das penas... Perdi-te. Para sempre. Não mais serás meu. Não mais visitarás esta cama. Não mais segurarás a minha mão e poderás dizer que eu sou tua. Isso tudo acabou... e acabou porquê? Para quê? Tirano! Besta! Mais uma noite em que tu não estás e me fazes chorar... fazes-me chorar... porque não te tenho! Porque já não aguento... porque a dor é tanta que me consome... Preciso de descansar... pelo menos esta noite! São tantas as noites sem dormir... são já muitos os dias sem respirar... sinto-me sufocada. Sufocada na dor! No arrependimento! Porquê eu? Porquê? As lágrimas escorrem-me pela face sem as conseguir controlar. Soluço ao ponto de nem conseguir respirar. Perdi tudo. Tudo! Quando te foste. Não há mais razões para viver. Não consigo viver mais sem ti. Levanto-me da cama. Procuro-te. No escuro, não te encontro. Onde então? Estarás aqui? Será que voltarás? Traidor, responde! Traíste todos os juramentos que me fizeste! Todas as promessas! Todas! Porque és tão cobarde? Porque me enganaste? Onde te escondes traidor? ONDE?! Grito. Depois do grito vem o silêncio... a minha respiração não pára. Sinto-me ofegante. Consumida pela adrenalina. O que quero eu? O que vou fazer? Estou a enlouquecer! O traste levou-me tudo. O safado enganou-me! Maldito sejas homem! Maldito por tudo aquilo que levaste! Até o sono. Até o meu conforto. Nada tenho. Nem o meu bem estar... Porque não me deixas ao menos dormir? Porque invades os meus sonhos... porque sussurras aos meus ouvidos? Porquê?
Deambulo pelo quarto escuro. Procuro acalmar-me. Apenas a luz da lua forte por entre as pesadas cortinas do meu quarto. São elas que forram as minhas janelas. São elas que impedem que veja o mundo. São elas que me impedem de respirar. Preciso de respirar. Preciso de viver! Corro para as cortinas e deito-lhes a mão. Procuro, num ápice, abri-las para te procurar. Quero-te ver uma última vez. Deixa-me dormir hoje em paz. Nada mais peço. Nada mais... deixa-me ficar com as doces lembranças. Deixa-me lembrar-te de quando fazíamos amor. Deixa-me ficar com o sabor da tua língua quando percorrias a minha boca... deixa-me ficar com tudo o que me deixaste de bom... todas as doces memórias... em que todas as vezes me dizias que me amavas... deixa-me ficar com tudo o que me prometeste... deixa-me ser feliz... deixas, meu amor? Por favor...
Agarro-me a mim própria entrelaçando os braços sobre o meu tronco. Sinto a pele fria... as lágrimas escorrem-me pelo rosto. Estou nua em diante de uma janela fria. Só tenho a lua brilhante no horizonte. O vazio é um pesadelo. Estou aqui, pronta para te receber... uma última vez! Não percebes? Não percebes que eu sou tua? Não percebes que eu queria cumprir todas as nossas promessas? Ser feliz contigo? Fazer-te feliz? Dar-te uma família? Porque me deixaste? Porque me abandonaste? Porquê? Porquêeee?!!!!!?
Já se faz tarde... e esta é mais uma noite sem dormir. Não consigo ir trabalhar amanhã. Não consigo reagir como uma pessoa normal. Não consigo pensar! Estou apenas cansada... muito cansada... Não sei se não seria melhor acabar com a minha vida. Já pensei tantas vezes nisso... agora que nada faz sentido... tirando tu. E a tua memória. Quero voltar para ti... quero que voltes para mim... mas como? Como podes voltar para mim? Quando foste tu que partiste... Que me deixaste... preciso de ti tanto... mas tanto... e tu... que me abandonaste... pensaste nestas consequências? Pensaste que poderias afetar-me assim tanto? Este devia ser o teu plano! Lá por não seres feliz... lá por não te sentires feliz comigo... havia direito em acabares com a tua vida!? Porque te deixaste levar? Porque bebeste naquela noite? Porque te meteste dentro de um carro que acabaria com o nosso futuro? Não bastou acabares com a tua vida... terias também de acabar com a minha? Choro... mais uma vez... choro compulsivamente. Não consigo dormir. Preciso de ajuda. Começo a remexer em tudo. Onde estão? Onde estão? Preciso deles. Sinto-me desesperada. ONDE ESTÃO!?!?
Grito. Exteriorizo a minha dor. Sinto-me louca. Procuro desesperadamente a saída para a minha dor. Procuro a salvação. Remexo, abro, fecho, reviro todas as gavetas do meu quarto. Eles estão escondidos. Desde a última vez... eles estão escondidos. Eu sei que sim... Eu escondi-os de mim. Porque na última vez foi por um triz. Foi mesmo. Mas agora preciso deles. É desta. Acabou-se tudo. Eu quero-os tanto. Quero-os tanto como te quero a ti. Sempre te quis muito. Muito! E agora quero-te mais. Quero ir para junto de ti. Ajuda-me meu amor... ajuda-me... acaba com a minha agonia! Eu sei que os escondi... mas onde? Eu estava tão bêbeda... bebi tanto naquela noite... queria esquecer-me de tudo... de tudo... e bebi... bebi... e só pensava em tomá-los a todos. Um a um... ou de mão cheia... mas não fui capaz... num último rasgo de consciência sei que agarrei neles e os guardei! Mas onde? Onde os guardei? Porque não me lembro agora? RAIOS!!!! A minha vida não presta.... que merda de cabeça a minha! Porque bebi tanto naquela noite? Porque tive de acabar a garrafa? Onde estão? Aqui? Não, não, não... aqui já vi... ainda à instantes! Já sei onde! Já sei onde! Só podem estar... só podem estar junto das coisas dele! Meu amor... ai meu amor! Eu vou já ter contigo. Estou decidida! É hoje. A minha agonia vai terminar.
Dirijo-me ao guarda-fato. Sinto a minha pele arrepiada da excitação. Ou será do frio? Não sei. Não quero saber. Mas ligo a luz do quarto. Vislumbro a cama vazia outra vez. Olho-me ao espelho partido por cima da minha cómoda. Ali me vi... tantas vezes... com ele. Abraçando-me. Dizendo que nada me faltaria. Que eu era dele. Que ele era meu. Tantas vezes me vi ali. Com ele. Dois corpos nus enrolados na cama. Celebrando. Celebrando um amor perfeito. E agora nada... nada... Apenas o vazio. Apenas o vazio e eu. Uma alma errante num corpo débil... com as marcas de quem já se cortou... Com as marcas das feridas de quem já perdeu o peso que podia ter perdido. Não me conheço. Também já não importa. Levaste-me tudo quando partiste. Levaste-me o orgulho. Levaste-me a minha alma. Levaste-me tudo... e apenas me deixaste a dor. A dor do vazio e da ausência. Porque fui tão estúpida? Porquê? Culpo-me tanto... tanto... tu eras tudo para mim. Mas vai terminar agora. Eu sei onde eles estão!
Estico o braço. Abro as portas. Vislumbro a caixa de cartão. Meio escondida entre os trapos... Mas é ali. Sim! Recordo-me. Foi ali que os guardei! Arranco a tampa da caixa de cartão preta... e olho... para o meu futuro glorioso! O meu futuro! O meu coração dispara. Sinto tanta adrenalina. Tanta... já não penso em mais nada! Só penso em ir ter com ele. Agarro no frasco branco. Desenrosco a tampa. Eles ainda ali estão... sorrindo para mim como se soubessem que o encontro era inevitável! Um dia... um dia... estariam ali para mim. Eles sempre souberam... E eu também. Abro a minha mão, despejo o frasco. Eles caem atabalhoados na palma da minha mão. Glória, penso eu! Salvação! Este é o fim de um ciclo. Em nada mais quero pensar! Num ápice levo a mão à boca. Êxtase! Consegui! Finalmente, consegui! Num primeiro momento sinto uma doce sensação de alívio. Fecho os olhos. Quero sentir os meus últimos momentos. Deixo cair o frasco no chão. Dirijo-me em paz para a nossa cama. É ao teu lado que me quero juntar a ti. Acompanha-me na viagem. Caio na cama. Já falta pouco... Esboço um último sorriso. Até já meu amor.

Capítulo 2 - Um dia que não é como os outros

Final de tarde. Um dia tranquilo como tantos outros. O Sol começa a pôr-se... a cidade está aparentemente calma. Talvez mais calma que noutros dias. O trânsito circula com normalidade, as pessoas seguem a sua rotina normal. Umas retornam a suas casas. Outras talvez vão jantar fora. Outras... outras farão deste dia um dia que não é como os outros. E quando nada fazia antever... o rádio do carro dá sinais de vida.
- Viatura 45 comunique. Viatura 45 comunique.
- Daqui viatura 45, escuto.
- Viatura 45 fomos notificados de um possível assalto e sequestro na periferia da cidade. Ao que parece um individuo forçou a entrada de uma residência e barricou-se no seu interior. É possível que existam reféns.
- Central, e eu vou sozinho para lá?
- Viatura 45, pedimos-lhe que faça o reconhecimento da situação e em caso positivo entre em contacto connosco para enviarmos reforços.
- Muito bem Central, qual a morada exata?
- No bairro azul, n.º 45.
- Ok. Conheço a zona. Passarei por lá imediatamente.
- Aguardamos novidades. Boa sorte.
- Termino.
A viatura da polícia inicia a sua marcha apressada. Ao volante, segue um homem encorpado, de 30 e poucos anos. Queixo quadrado, cabelo farto, alto e moreno. Agente Francisco, um dos mais respeitados na sua esquadra, essencialmente por ser conhecido pelo seu código de conduta, responsabilidade e simpatia. Um homem à antiga, daqueles que hoje já são difíceis de encontrar. Os seus olhos seguem ocultados por uns óculos de lentes escuras à aviador. O Sol baixo típico dos finais de tarde de verão assim obriga para evitar males maiores.
Enquanto Francisco conduz a sua viatura bafejada com o número 45, recorda-se rapidamente dos ensinamentos de seu pai.
- Francisco, na vida só há três tipos de pessoas: pastores, ovelhas e lobos. Qual queres ser?
- Pai não compreendo a pergunta! - exclamava Francisco, enquanto olhava para o seu pai de olhos bem abertos, como era típico em si sempre que olhava para seu pai.
- Filho, as ovelhas são as pessoas normais, os lobos são os que se alimentam das ovelhas e os pastores são os que guardam as ovelhas. Qual queres ser tu? - questionava o pai
- Quero ser o pastor! - dizia sem hesitar Francisco.
- Pois bem filho - insistia o pai - está na hora então de começares a liderar o teu rebanho. Podes começar aqui em casa, e amanhã levas os teus primos à escola! São tua família, e tens de começar a tomar conta dela.
Francisco lembrava-se sempre destas palavras de seu pai antes de interceder em qualquer evento de ordem pública. "Tomar conta", "são tua família", "começar a liderar". Ser um pastor. Francisco era um homem disciplinado. Nos seus 30 e poucos anos, já levava 10 anos como um agente da polícia condecorado por mérito. Fazia aquilo que gostava mais: servir e proteger. Era um pastor que guardava o seu rebanho, sem dúvida.
A sua viatura continuava a deslizar pela estrada ao encontro da residência sinalizada. O que teria acontecido de facto? Estaríamos perante um crime a ser confirmado dentro de instantes? Francisco era um homem calmo, mas dentro da sua cabeça pairavam as constantes preocupações de quem irá em breve enfrentar uma situação potencialmente perigosa. Será que vou enfrentar perigo? Será apenas uma pessoa? Pode ser um desacato sem importância! Terei de chamar reforços? Hummmm... talvez! Ou talvez não... bem, daqui a pouco já saberemos!
A mente de Francisco mantinha-se ativa. E enquanto a viatura continuava a sua marcha, Francisco recordava-se agora da morte de sua mãe. 12 anos antes... Vítima de um tumor no peito. Primeiro havia feito a operação para a extração. Depois fez vários tratamentos de quimioterapia para impedir que o tumor se desenvolvesse. Mas a morte haveria de chegar. A morte levara-lhe a sua mãe, antes desta poder ver o seu filho vestir o uniforme pela primeira vez. Francisco, mais do que ninguém, sabia que a vida era curta. Sabia que a qualquer momento a vida daqueles de quem gostamos poderia ser tirada rapidamente. Foi assim com o seu irmão mais novo, vítima de uma leucemia. Francisco viu-o partir aos 7 anos de idade. Foi assim com a sua mãe... Francisco tinha acabado de fazer 20 anos. Seria assim com seu pai... Já Francisco tinha 28 anos. Um enfarte levara-lhe a última grande referência da sua vida. Talvez a maior de todas. Francisco podia ser novo, mas toda a sua família mais próxima já havia partido. Pai, mãe e irmão. Sobrava ele próprio de uma família que deveria ser ainda de quatro. Deveria... Francisco era um homem firme, mas estes pensamentos permitiam-lhe sempre consciencializar-se que a vida é um ativo importante. O mais importante que temos. E que ele ainda não estava a aproveitar a sua vida. Faltava-lhe um passo em frente que teimava em dar. Faltava-lhe ele próprio conceber a sua família. E lidera-la. Tornar-se um pastor. Havia sido isso que tinha prometido à sua mãe. E ele sabia que tinha de procurar alguém para entregar o seu coração. A vida, de facto, era curta de mais para não ser aproveitada com o que demais importante podemos ter: a descoberta do amor, sermos inundados por essa fabulosa força, que nos alimenta, que nos faz sonhar e que nos faz querer mais.
Estes pensamentos eram também os pensamentos que mais deixavam Francisco desconfortável sempre que tinha uma situação de intervenção ou urgência. Como esta que enfrentaria dentro de breves instantes. Seria esta uma situação perigosa que colocaria em risco até a sua própria vida? O que se estaria a passar naquela casa? Existiriam reféns de facto? Eram muitas as questões que dentro de momentos levariam Francisco, um dos mais talentosos e dedicados agentes da polícia da cidade, a por à prova as suas capacidades.
O Sol estava a pôr-se e Francisco acabaria por chegar ao bairro sinalizado pela Central. Faltava agora chegar à residência com o número 45. Francisco diminui a velocidade da sua viatura e começa a passar pelos vários números. 17... 21... 29... 35...41. Decide parar o carro. A sirene do seu carro estava desligada, em perfeita sintonia com a aparente tranquilidade de todo o bairro. Um estranho silêncio pairava na rua e Francisco não vislumbrava nenhuma alma errante. Será que teria sido algum vizinho a informar a polícia? Será que havia de facto algum assalto? Francisco sai do carro, e ergue-se no meio da rua perante o vazio. Com a mão direita afasta os seus óculos de aviador e coloca-os dentro do carro. Inspira profundamente. Estes momentos deixavam-no sempre ansioso e tenso. Afinal de contas, tratava-se de uma situação de perigo potencial, e o suposto local do crime encontrava-se a apenas alguns metros de distância.
A casa, um rés-de-chão simples, com paredes brancas, tinha um pequeno jardim à frente. Francisco avançava na rua, aproximando-se a cada passo daquele local misterioso, apoiando já a sua mão junto à pistola carregada na sua cintura. Olhava fixamente para cada janela da casa em busca de algum pormenor, algum registo de movimento que lhe permitisse avaliar rapidamente que situação de risco enfrentava. Mas nada via... nem um único barulho vindo da casa! Francisco percorre a rua, junto aos carros estacionados, como se estes lhe servissem de escudo de proteção para qualquer ameaça que pudesse vir ao encontro dele. A sua respiração acelera com a crescente ansiedade. Está em frente da porta de entrada da casa, e vê a porta entreaberta. Será que estará alguém dentro da casa? Na rua... ninguém. Olha rapidamente em redor e observa as casas vizinhas. Não vê ninguém. Sente-se mais ansioso que noutras situações, talvez pelo final de tarde quente e pelo estranho silêncio numa rua onde nem um único carro passa diante de si. Decide agir. Num ápice saca da sua arma e empunhando-a dirige-se para a porta da casa.
- Está alguém dentro de casa? - grita, quando com a mão direita empunha a pistola e com a esquerda força ligeiramente a abertura da porta.
Nada. Ninguém responde. Da casa só sente silêncio. Nem cheiro ou odor diferente detecta.
- Se está alguém dentro de casa, exijo saber já! - insiste, tentando obter algum género de resposta.
- Socorro! - é a resposta de uma voz feminina, tímida, que ecoa desde os fundos da casa até à porta da entrada.
Num ápice, os músculos de todo o corpo de Francisco contraem-se. O seu nível de atenção dispara, e as suas pupilas dilatam imediatamente. O seu corpo está em alerta máximo, de modo a enfrentar com a máxima rapidez todo e qualquer risco que possa surgir no interior. Francisco aperta ainda mais a pistola que segura com firmeza. Avança para o interior da casa avaliando cada centímetro do seu interior. A pistola acompanha a sua visão avaliando rapidamente todas as divisões da cada que vislumbra a partir da sua entrada. Um corredor à direita segue faz com que a sala inicial continue em diante para outras divisões. Na sala não existe perigo. Apenas os móveis, os sofás, a televisão grande e muita decoração.
- Socorro! - novamente, o grito feminino, cada vez mais pálido, como se a pessoa já não tivesse forças...
Francisco aponta a arma para o corredor, alinhando todo o seu corpo, num ápice, em direção da suposta zona para onde terá de caminhar na procura do perigo. Passo ante passo, o seu corpo encaminha-se para a entrada do corredor. A sua respiração aumenta. Gotas de suor escorrem-lhe pela cara. Sente o calor deste final de tarde, já quase sem luz, mas ainda com luz suficiente para perceber onde está e o que pode enfrentar. Todo o seu corpo segue tenso. Ele sabe que pode estar mais alguém dentro da casa. Sabe que tem de jogar pelo seguro e que não pode cometer erros. A sua vida também pode estar em perigo.
- Não quero morrer... - a frase é já pronunciada sem energia, e acompanhada por soluços.
A atenção de Francisco concentra-se no final do corredor. É a zona da cozinha, alguém está na cozinha! Francisco sabe que atravessar qualquer corredor é potencialmente perigoso. Em qualquer uma das divisões, tanto à sua direita ou à sua esquerda, pode estar alguém escondido, preparado para lhe fazer mal, para o atacar! A sua respiração acentua-se. A sua camisa justa ao corpo evidencia as marcas da transpiração. O suor abunda, fruto da ansiedade, mas isso não pode controlar. A sua boca está seca, os lábios de Francisco saboreiam o ar seco que envolve toda a atmosfera da casa. Mas Francisco prossegue. Tem de prosseguir. Pelo menos uma vida está em perigo. Nem lhe ocorre chamar reforços ou pedir qualquer ajuda. Neste momento, tanto o seu corpo como a sua atenção estão apenas concentrados em defender-se de todo e qualquer risco ou ameaça que possa surgir e interferir prontamente nesta situação, salvando as vidas que possam estar em risco. Avança mais um passo em frente. Sempre encostado à parede do corredor, avalia as possíveis ameaças que podem estar nas três portas que tem ao longo do corredor. Serão quartos? Casas de banho? Apenas a última porta está aberta, as outras duas estão fechadas. Francisco decide não perder tempo e avançar imediatamente para a cozinha. É lá que está a voz que o inquieta. Faz apenas uma paragem antes do final do corredor, apontando a arma para a última porta aberta do corredor. Olha. Olha para o interior de um quarto que está iluminado por uma janela com luz natural. Vê uma cama. Vê um armário. Mas não vê ninguém. Ali não há ninguém. Novamente num ápice direcciona toda a sua atenção para a cozinha. A cozinha que se encontra um metro à frente deste quarto, com um chão em cerâmica cinza escura. Francisco segue com a pistola empunhada em frente. Entra na cozinha e todo o seu corpo imediatamente contrai.
Uma mulher deitada no chão ensanguentada, junto ao lava-loiças da cozinha. Ainda respira! Um homem sentado ao lado dela segurando uma faca de cozinha. De olhos vidrados no chão. Com a roupa, faca e mãos cobertos de sangue.
- Polícia! Afaste-se da faca e da vítima e deite-se imediatamente no chão! - exige Francisco agora que tem a leitura de todo o cenário do crime.
- Eu não sou capaz de a matar! - responde o homem de cabelos negros, sentado ao lado da vítima no chão da cozinha.
O cenário parece horripilante. A mulher aparenta ter mais de 50 anos, com roupas simples, mas embebidas no sangue fruto dos vários cortes que ela parece ter nos braços. Ao seu lado, uma possa de sangue cobre o chão. A mulher deve ter um golpe mais profundo, talvez na zona do abdomem. Francisco ainda não consegue perceber porque a mulher está de barriga contra o chão. Os cabelos longos e escuros cobrem-lhe a face. Ela está gravemente ferida, mas respira.
- Central, preciso de reforços urgentemente, tenho uma mulher ferida em estado grave e um suspeito no local do crime - diz Francisco agarrando com a mão esquerda o rádio que traz consigo, enquanto com mão direita continua a apontar para a pistola na direção do suspeito.
- EU NÃO SOU CAPAZ DE A MATAR! - grita agora o suspeito do crime, deixando Francisco completamente boquiaberto com a reacção impulsiva do homem que eleva a mão no ar com o gume da faca apontado para o tecto da cozinha.
- Larga imediatamente a faca! Para tua segurança larga a faca, se não sou obrigado a disparar - grita Francisco novamente, visivelmente irritado com a situação.
- Ai sim? Então dispara! Mata-me! - diz o homem, agora apontando a faca na direção de Francisco.
Nisto o homem levanta-se e põe-se prontamente de pé. O homem aparenta ter 40 e alguns anos. Alto, pele branca. Olhos de um azul marcante. Marcas de lágrimas estampadas na sua cara, mas visivelmente inquieto, e com respiração acelerada. Os seus olhos não param de tremer. O homem está ansioso! Completamente dominado por adrenalina, o seu corpo está tenso e a sua caixa torácica expande-se largamente a cada inspiração. Francisco mantém a pistola apontada ao peito do suspeito. Escassos metros separam ambos. Três a quatro metros no máximo, o suficiente para Francisco se sentir mais seguro numa situação em que a sua pistola defronta uma faca de cozinha, mas onde sente o homem completamente descontrolado e inflamado por um misto de emoções ainda impossíveis de descrever dado o momento.
- MATA-ME! - grita o suspeito elevando a mão que tem a faca e apontando-a em direção a Francisco!
BAHMMMM! Um disparo é feito pela pistola de Francisco e atinge o tórax do suspeito. A bala perfura a camisola preta do individuo e um rasto de sangue é projectado para o ar. O sujeito deixa cair a faca no chão e cai de joelhos no chão. Os grandes olhos azuis olham para Francisco fixamente. O suspeito está agora à mercê da autoridade, derrotado, inofensivo, e com uma bala cravada no peito. Cai com o peito no chão, e Francisco rapidamente avança na sua direção, pontapeando a faca para longe do suspeito, sacando as algemas e imobilizando prontamente o individuo que ainda respira.
- Central, peço com urgência apoio médico para o Bairro Azul, número 45, tenho duas vítimas com necessidade de assistência médica urgente, uma delas é o suspeito do crime que se encontra já imobilizado - avançou Francisco.
- Agente Francisco, as viaturas de apoio já seguem a caminho e as viaturas médicas também. Deverão chegar ao local dentro de cinco minutos. - explica a Central.
- Obrigado Central. Termino. - diz Francisco quando coloca os dois dedos da sua mão direita junto ao pescoço da mulher para lhe tentar medir a pulsação.
- Está a chegar a ajuda médica especializada. Aguente-se, vamos tentar salvá-la. - diz Francisco para a mulher, enquanto avalia o cenário dramático, como se procurasse alguma pista sobre o que justificasse o crime que ali presenciara.
Que poderia ter levado um homem aparentemente normal, talvez até de boa condição económica, a efetuar este crime? A mente de Francisco iniciava um processo de procura de respostas que sabia só ser possível colhê-las com mais tempo. Num último relance, Francisco olha para ambas as vítimas. Será que ambos sobreviveriam? No decorrer de todas estas questões, Francisco levanta-se prontamente com o som de diversas sirenes a ecoar pelas ruas do bairro. Os reforços estão a chegar e a ajuda médica também. O dia ainda será longo.