terça-feira, 26 de abril de 2016

Capítulo 2 - Um dia que não é como os outros

Final de tarde. Um dia tranquilo como tantos outros. O Sol começa a pôr-se... a cidade está aparentemente calma. Talvez mais calma que noutros dias. O trânsito circula com normalidade, as pessoas seguem a sua rotina normal. Umas retornam a suas casas. Outras talvez vão jantar fora. Outras... outras farão deste dia um dia que não é como os outros. E quando nada fazia antever... o rádio do carro dá sinais de vida.
- Viatura 45 comunique. Viatura 45 comunique.
- Daqui viatura 45, escuto.
- Viatura 45 fomos notificados de um possível assalto e sequestro na periferia da cidade. Ao que parece um individuo forçou a entrada de uma residência e barricou-se no seu interior. É possível que existam reféns.
- Central, e eu vou sozinho para lá?
- Viatura 45, pedimos-lhe que faça o reconhecimento da situação e em caso positivo entre em contacto connosco para enviarmos reforços.
- Muito bem Central, qual a morada exata?
- No bairro azul, n.º 45.
- Ok. Conheço a zona. Passarei por lá imediatamente.
- Aguardamos novidades. Boa sorte.
- Termino.
A viatura da polícia inicia a sua marcha apressada. Ao volante, segue um homem encorpado, de 30 e poucos anos. Queixo quadrado, cabelo farto, alto e moreno. Agente Francisco, um dos mais respeitados na sua esquadra, essencialmente por ser conhecido pelo seu código de conduta, responsabilidade e simpatia. Um homem à antiga, daqueles que hoje já são difíceis de encontrar. Os seus olhos seguem ocultados por uns óculos de lentes escuras à aviador. O Sol baixo típico dos finais de tarde de verão assim obriga para evitar males maiores.
Enquanto Francisco conduz a sua viatura bafejada com o número 45, recorda-se rapidamente dos ensinamentos de seu pai.
- Francisco, na vida só há três tipos de pessoas: pastores, ovelhas e lobos. Qual queres ser?
- Pai não compreendo a pergunta! - exclamava Francisco, enquanto olhava para o seu pai de olhos bem abertos, como era típico em si sempre que olhava para seu pai.
- Filho, as ovelhas são as pessoas normais, os lobos são os que se alimentam das ovelhas e os pastores são os que guardam as ovelhas. Qual queres ser tu? - questionava o pai
- Quero ser o pastor! - dizia sem hesitar Francisco.
- Pois bem filho - insistia o pai - está na hora então de começares a liderar o teu rebanho. Podes começar aqui em casa, e amanhã levas os teus primos à escola! São tua família, e tens de começar a tomar conta dela.
Francisco lembrava-se sempre destas palavras de seu pai antes de interceder em qualquer evento de ordem pública. "Tomar conta", "são tua família", "começar a liderar". Ser um pastor. Francisco era um homem disciplinado. Nos seus 30 e poucos anos, já levava 10 anos como um agente da polícia condecorado por mérito. Fazia aquilo que gostava mais: servir e proteger. Era um pastor que guardava o seu rebanho, sem dúvida.
A sua viatura continuava a deslizar pela estrada ao encontro da residência sinalizada. O que teria acontecido de facto? Estaríamos perante um crime a ser confirmado dentro de instantes? Francisco era um homem calmo, mas dentro da sua cabeça pairavam as constantes preocupações de quem irá em breve enfrentar uma situação potencialmente perigosa. Será que vou enfrentar perigo? Será apenas uma pessoa? Pode ser um desacato sem importância! Terei de chamar reforços? Hummmm... talvez! Ou talvez não... bem, daqui a pouco já saberemos!
A mente de Francisco mantinha-se ativa. E enquanto a viatura continuava a sua marcha, Francisco recordava-se agora da morte de sua mãe. 12 anos antes... Vítima de um tumor no peito. Primeiro havia feito a operação para a extração. Depois fez vários tratamentos de quimioterapia para impedir que o tumor se desenvolvesse. Mas a morte haveria de chegar. A morte levara-lhe a sua mãe, antes desta poder ver o seu filho vestir o uniforme pela primeira vez. Francisco, mais do que ninguém, sabia que a vida era curta. Sabia que a qualquer momento a vida daqueles de quem gostamos poderia ser tirada rapidamente. Foi assim com o seu irmão mais novo, vítima de uma leucemia. Francisco viu-o partir aos 7 anos de idade. Foi assim com a sua mãe... Francisco tinha acabado de fazer 20 anos. Seria assim com seu pai... Já Francisco tinha 28 anos. Um enfarte levara-lhe a última grande referência da sua vida. Talvez a maior de todas. Francisco podia ser novo, mas toda a sua família mais próxima já havia partido. Pai, mãe e irmão. Sobrava ele próprio de uma família que deveria ser ainda de quatro. Deveria... Francisco era um homem firme, mas estes pensamentos permitiam-lhe sempre consciencializar-se que a vida é um ativo importante. O mais importante que temos. E que ele ainda não estava a aproveitar a sua vida. Faltava-lhe um passo em frente que teimava em dar. Faltava-lhe ele próprio conceber a sua família. E lidera-la. Tornar-se um pastor. Havia sido isso que tinha prometido à sua mãe. E ele sabia que tinha de procurar alguém para entregar o seu coração. A vida, de facto, era curta de mais para não ser aproveitada com o que demais importante podemos ter: a descoberta do amor, sermos inundados por essa fabulosa força, que nos alimenta, que nos faz sonhar e que nos faz querer mais.
Estes pensamentos eram também os pensamentos que mais deixavam Francisco desconfortável sempre que tinha uma situação de intervenção ou urgência. Como esta que enfrentaria dentro de breves instantes. Seria esta uma situação perigosa que colocaria em risco até a sua própria vida? O que se estaria a passar naquela casa? Existiriam reféns de facto? Eram muitas as questões que dentro de momentos levariam Francisco, um dos mais talentosos e dedicados agentes da polícia da cidade, a por à prova as suas capacidades.
O Sol estava a pôr-se e Francisco acabaria por chegar ao bairro sinalizado pela Central. Faltava agora chegar à residência com o número 45. Francisco diminui a velocidade da sua viatura e começa a passar pelos vários números. 17... 21... 29... 35...41. Decide parar o carro. A sirene do seu carro estava desligada, em perfeita sintonia com a aparente tranquilidade de todo o bairro. Um estranho silêncio pairava na rua e Francisco não vislumbrava nenhuma alma errante. Será que teria sido algum vizinho a informar a polícia? Será que havia de facto algum assalto? Francisco sai do carro, e ergue-se no meio da rua perante o vazio. Com a mão direita afasta os seus óculos de aviador e coloca-os dentro do carro. Inspira profundamente. Estes momentos deixavam-no sempre ansioso e tenso. Afinal de contas, tratava-se de uma situação de perigo potencial, e o suposto local do crime encontrava-se a apenas alguns metros de distância.
A casa, um rés-de-chão simples, com paredes brancas, tinha um pequeno jardim à frente. Francisco avançava na rua, aproximando-se a cada passo daquele local misterioso, apoiando já a sua mão junto à pistola carregada na sua cintura. Olhava fixamente para cada janela da casa em busca de algum pormenor, algum registo de movimento que lhe permitisse avaliar rapidamente que situação de risco enfrentava. Mas nada via... nem um único barulho vindo da casa! Francisco percorre a rua, junto aos carros estacionados, como se estes lhe servissem de escudo de proteção para qualquer ameaça que pudesse vir ao encontro dele. A sua respiração acelera com a crescente ansiedade. Está em frente da porta de entrada da casa, e vê a porta entreaberta. Será que estará alguém dentro da casa? Na rua... ninguém. Olha rapidamente em redor e observa as casas vizinhas. Não vê ninguém. Sente-se mais ansioso que noutras situações, talvez pelo final de tarde quente e pelo estranho silêncio numa rua onde nem um único carro passa diante de si. Decide agir. Num ápice saca da sua arma e empunhando-a dirige-se para a porta da casa.
- Está alguém dentro de casa? - grita, quando com a mão direita empunha a pistola e com a esquerda força ligeiramente a abertura da porta.
Nada. Ninguém responde. Da casa só sente silêncio. Nem cheiro ou odor diferente detecta.
- Se está alguém dentro de casa, exijo saber já! - insiste, tentando obter algum género de resposta.
- Socorro! - é a resposta de uma voz feminina, tímida, que ecoa desde os fundos da casa até à porta da entrada.
Num ápice, os músculos de todo o corpo de Francisco contraem-se. O seu nível de atenção dispara, e as suas pupilas dilatam imediatamente. O seu corpo está em alerta máximo, de modo a enfrentar com a máxima rapidez todo e qualquer risco que possa surgir no interior. Francisco aperta ainda mais a pistola que segura com firmeza. Avança para o interior da casa avaliando cada centímetro do seu interior. A pistola acompanha a sua visão avaliando rapidamente todas as divisões da cada que vislumbra a partir da sua entrada. Um corredor à direita segue faz com que a sala inicial continue em diante para outras divisões. Na sala não existe perigo. Apenas os móveis, os sofás, a televisão grande e muita decoração.
- Socorro! - novamente, o grito feminino, cada vez mais pálido, como se a pessoa já não tivesse forças...
Francisco aponta a arma para o corredor, alinhando todo o seu corpo, num ápice, em direção da suposta zona para onde terá de caminhar na procura do perigo. Passo ante passo, o seu corpo encaminha-se para a entrada do corredor. A sua respiração aumenta. Gotas de suor escorrem-lhe pela cara. Sente o calor deste final de tarde, já quase sem luz, mas ainda com luz suficiente para perceber onde está e o que pode enfrentar. Todo o seu corpo segue tenso. Ele sabe que pode estar mais alguém dentro da casa. Sabe que tem de jogar pelo seguro e que não pode cometer erros. A sua vida também pode estar em perigo.
- Não quero morrer... - a frase é já pronunciada sem energia, e acompanhada por soluços.
A atenção de Francisco concentra-se no final do corredor. É a zona da cozinha, alguém está na cozinha! Francisco sabe que atravessar qualquer corredor é potencialmente perigoso. Em qualquer uma das divisões, tanto à sua direita ou à sua esquerda, pode estar alguém escondido, preparado para lhe fazer mal, para o atacar! A sua respiração acentua-se. A sua camisa justa ao corpo evidencia as marcas da transpiração. O suor abunda, fruto da ansiedade, mas isso não pode controlar. A sua boca está seca, os lábios de Francisco saboreiam o ar seco que envolve toda a atmosfera da casa. Mas Francisco prossegue. Tem de prosseguir. Pelo menos uma vida está em perigo. Nem lhe ocorre chamar reforços ou pedir qualquer ajuda. Neste momento, tanto o seu corpo como a sua atenção estão apenas concentrados em defender-se de todo e qualquer risco ou ameaça que possa surgir e interferir prontamente nesta situação, salvando as vidas que possam estar em risco. Avança mais um passo em frente. Sempre encostado à parede do corredor, avalia as possíveis ameaças que podem estar nas três portas que tem ao longo do corredor. Serão quartos? Casas de banho? Apenas a última porta está aberta, as outras duas estão fechadas. Francisco decide não perder tempo e avançar imediatamente para a cozinha. É lá que está a voz que o inquieta. Faz apenas uma paragem antes do final do corredor, apontando a arma para a última porta aberta do corredor. Olha. Olha para o interior de um quarto que está iluminado por uma janela com luz natural. Vê uma cama. Vê um armário. Mas não vê ninguém. Ali não há ninguém. Novamente num ápice direcciona toda a sua atenção para a cozinha. A cozinha que se encontra um metro à frente deste quarto, com um chão em cerâmica cinza escura. Francisco segue com a pistola empunhada em frente. Entra na cozinha e todo o seu corpo imediatamente contrai.
Uma mulher deitada no chão ensanguentada, junto ao lava-loiças da cozinha. Ainda respira! Um homem sentado ao lado dela segurando uma faca de cozinha. De olhos vidrados no chão. Com a roupa, faca e mãos cobertos de sangue.
- Polícia! Afaste-se da faca e da vítima e deite-se imediatamente no chão! - exige Francisco agora que tem a leitura de todo o cenário do crime.
- Eu não sou capaz de a matar! - responde o homem de cabelos negros, sentado ao lado da vítima no chão da cozinha.
O cenário parece horripilante. A mulher aparenta ter mais de 50 anos, com roupas simples, mas embebidas no sangue fruto dos vários cortes que ela parece ter nos braços. Ao seu lado, uma possa de sangue cobre o chão. A mulher deve ter um golpe mais profundo, talvez na zona do abdomem. Francisco ainda não consegue perceber porque a mulher está de barriga contra o chão. Os cabelos longos e escuros cobrem-lhe a face. Ela está gravemente ferida, mas respira.
- Central, preciso de reforços urgentemente, tenho uma mulher ferida em estado grave e um suspeito no local do crime - diz Francisco agarrando com a mão esquerda o rádio que traz consigo, enquanto com mão direita continua a apontar para a pistola na direção do suspeito.
- EU NÃO SOU CAPAZ DE A MATAR! - grita agora o suspeito do crime, deixando Francisco completamente boquiaberto com a reacção impulsiva do homem que eleva a mão no ar com o gume da faca apontado para o tecto da cozinha.
- Larga imediatamente a faca! Para tua segurança larga a faca, se não sou obrigado a disparar - grita Francisco novamente, visivelmente irritado com a situação.
- Ai sim? Então dispara! Mata-me! - diz o homem, agora apontando a faca na direção de Francisco.
Nisto o homem levanta-se e põe-se prontamente de pé. O homem aparenta ter 40 e alguns anos. Alto, pele branca. Olhos de um azul marcante. Marcas de lágrimas estampadas na sua cara, mas visivelmente inquieto, e com respiração acelerada. Os seus olhos não param de tremer. O homem está ansioso! Completamente dominado por adrenalina, o seu corpo está tenso e a sua caixa torácica expande-se largamente a cada inspiração. Francisco mantém a pistola apontada ao peito do suspeito. Escassos metros separam ambos. Três a quatro metros no máximo, o suficiente para Francisco se sentir mais seguro numa situação em que a sua pistola defronta uma faca de cozinha, mas onde sente o homem completamente descontrolado e inflamado por um misto de emoções ainda impossíveis de descrever dado o momento.
- MATA-ME! - grita o suspeito elevando a mão que tem a faca e apontando-a em direção a Francisco!
BAHMMMM! Um disparo é feito pela pistola de Francisco e atinge o tórax do suspeito. A bala perfura a camisola preta do individuo e um rasto de sangue é projectado para o ar. O sujeito deixa cair a faca no chão e cai de joelhos no chão. Os grandes olhos azuis olham para Francisco fixamente. O suspeito está agora à mercê da autoridade, derrotado, inofensivo, e com uma bala cravada no peito. Cai com o peito no chão, e Francisco rapidamente avança na sua direção, pontapeando a faca para longe do suspeito, sacando as algemas e imobilizando prontamente o individuo que ainda respira.
- Central, peço com urgência apoio médico para o Bairro Azul, número 45, tenho duas vítimas com necessidade de assistência médica urgente, uma delas é o suspeito do crime que se encontra já imobilizado - avançou Francisco.
- Agente Francisco, as viaturas de apoio já seguem a caminho e as viaturas médicas também. Deverão chegar ao local dentro de cinco minutos. - explica a Central.
- Obrigado Central. Termino. - diz Francisco quando coloca os dois dedos da sua mão direita junto ao pescoço da mulher para lhe tentar medir a pulsação.
- Está a chegar a ajuda médica especializada. Aguente-se, vamos tentar salvá-la. - diz Francisco para a mulher, enquanto avalia o cenário dramático, como se procurasse alguma pista sobre o que justificasse o crime que ali presenciara.
Que poderia ter levado um homem aparentemente normal, talvez até de boa condição económica, a efetuar este crime? A mente de Francisco iniciava um processo de procura de respostas que sabia só ser possível colhê-las com mais tempo. Num último relance, Francisco olha para ambas as vítimas. Será que ambos sobreviveriam? No decorrer de todas estas questões, Francisco levanta-se prontamente com o som de diversas sirenes a ecoar pelas ruas do bairro. Os reforços estão a chegar e a ajuda médica também. O dia ainda será longo.

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