Final de tarde. Um dia tranquilo
como tantos outros. O Sol começa a pôr-se... a cidade está aparentemente calma.
Talvez mais calma que noutros dias. O trânsito circula com normalidade, as
pessoas seguem a sua rotina normal. Umas retornam a suas casas. Outras talvez
vão jantar fora. Outras... outras farão deste dia um dia que não é como os
outros. E quando nada fazia antever... o rádio do carro dá sinais de vida.
- Viatura 45 comunique. Viatura 45 comunique.
- Daqui viatura 45, escuto.
- Viatura 45 fomos notificados de um possível assalto e sequestro na
periferia da cidade. Ao que parece um individuo forçou a entrada de uma
residência e barricou-se no seu interior. É possível que existam reféns.
- Central, e eu vou sozinho para
lá?
- Viatura 45, pedimos-lhe que faça o reconhecimento da situação e em caso
positivo entre em contacto connosco para enviarmos reforços.
- Muito bem Central, qual a
morada exata?
- No bairro azul, n.º 45.
- Ok. Conheço a zona. Passarei
por lá imediatamente.
- Aguardamos novidades. Boa sorte.
- Termino.
A viatura da polícia inicia a sua
marcha apressada. Ao volante, segue um homem encorpado, de 30 e poucos anos.
Queixo quadrado, cabelo farto, alto e moreno. Agente Francisco, um dos mais
respeitados na sua esquadra, essencialmente por ser conhecido pelo seu código
de conduta, responsabilidade e simpatia. Um homem à antiga, daqueles que hoje
já são difíceis de encontrar. Os seus olhos seguem ocultados por uns óculos de
lentes escuras à aviador. O Sol baixo típico dos finais de tarde de verão assim
obriga para evitar males maiores.
Enquanto Francisco conduz a sua
viatura bafejada com o número 45, recorda-se rapidamente dos ensinamentos de
seu pai.
- Francisco, na vida só há três
tipos de pessoas: pastores, ovelhas e lobos. Qual queres ser?
- Pai não compreendo a pergunta!
- exclamava Francisco, enquanto olhava para o seu pai de olhos bem abertos,
como era típico em si sempre que olhava para seu pai.
- Filho, as ovelhas são as
pessoas normais, os lobos são os que se alimentam das ovelhas e os pastores são
os que guardam as ovelhas. Qual queres ser tu? - questionava o pai
- Quero ser o pastor! - dizia sem
hesitar Francisco.
- Pois bem filho - insistia o pai
- está na hora então de começares a liderar o teu rebanho. Podes começar aqui
em casa, e amanhã levas os teus primos à escola! São tua família, e tens de
começar a tomar conta dela.
Francisco lembrava-se sempre
destas palavras de seu pai antes de interceder em qualquer evento de ordem
pública. "Tomar conta", "são tua família", "começar a
liderar". Ser um pastor. Francisco era um homem disciplinado. Nos seus 30
e poucos anos, já levava 10 anos como um agente da polícia condecorado por
mérito. Fazia aquilo que gostava mais: servir e proteger. Era um pastor que
guardava o seu rebanho, sem dúvida.
A sua viatura continuava a
deslizar pela estrada ao encontro da residência sinalizada. O que teria
acontecido de facto? Estaríamos perante um crime a ser confirmado dentro de
instantes? Francisco era um homem calmo, mas dentro da sua cabeça pairavam as
constantes preocupações de quem irá em breve enfrentar uma situação
potencialmente perigosa. Será que vou enfrentar perigo? Será apenas uma pessoa?
Pode ser um desacato sem importância! Terei de chamar reforços? Hummmm...
talvez! Ou talvez não... bem, daqui a pouco já saberemos!
A mente de Francisco mantinha-se
ativa. E enquanto a viatura continuava a sua marcha, Francisco recordava-se
agora da morte de sua mãe. 12 anos antes... Vítima de um tumor no peito.
Primeiro havia feito a operação para a extração. Depois fez vários tratamentos
de quimioterapia para impedir que o tumor se desenvolvesse. Mas a morte haveria
de chegar. A morte levara-lhe a sua mãe, antes desta poder ver o seu filho
vestir o uniforme pela primeira vez. Francisco, mais do que ninguém, sabia que
a vida era curta. Sabia que a qualquer momento a vida daqueles de quem gostamos
poderia ser tirada rapidamente. Foi assim com o seu irmão mais novo, vítima de
uma leucemia. Francisco viu-o partir aos 7 anos de idade. Foi assim com a sua
mãe... Francisco tinha acabado de fazer 20 anos. Seria assim com seu pai... Já
Francisco tinha 28 anos. Um enfarte levara-lhe a última grande referência da
sua vida. Talvez a maior de todas. Francisco podia ser novo, mas toda a sua
família mais próxima já havia partido. Pai, mãe e irmão. Sobrava ele próprio de
uma família que deveria ser ainda de quatro. Deveria... Francisco era um homem
firme, mas estes pensamentos permitiam-lhe sempre consciencializar-se que a
vida é um ativo importante. O mais importante que temos. E que ele ainda não estava
a aproveitar a sua vida. Faltava-lhe um passo em frente que teimava em dar.
Faltava-lhe ele próprio conceber a sua família. E lidera-la. Tornar-se um
pastor. Havia sido isso que tinha prometido à sua mãe. E ele sabia que tinha de
procurar alguém para entregar o seu coração. A vida, de facto, era curta de
mais para não ser aproveitada com o que demais importante podemos ter: a
descoberta do amor, sermos inundados por essa fabulosa força, que nos alimenta,
que nos faz sonhar e que nos faz querer mais.
Estes pensamentos eram também os
pensamentos que mais deixavam Francisco desconfortável sempre que tinha uma
situação de intervenção ou urgência. Como esta que enfrentaria dentro de breves
instantes. Seria esta uma situação perigosa que colocaria em risco até a sua
própria vida? O que se estaria a passar naquela casa? Existiriam reféns de
facto? Eram muitas as questões que dentro de momentos levariam Francisco, um
dos mais talentosos e dedicados agentes da polícia da cidade, a por à prova as
suas capacidades.
O Sol estava a pôr-se e Francisco
acabaria por chegar ao bairro sinalizado pela Central. Faltava agora chegar à
residência com o número 45. Francisco diminui a velocidade da sua viatura e
começa a passar pelos vários números. 17... 21... 29... 35...41. Decide parar o
carro. A sirene do seu carro estava desligada, em perfeita sintonia com a
aparente tranquilidade de todo o bairro. Um estranho silêncio pairava na rua e
Francisco não vislumbrava nenhuma alma errante. Será que teria sido algum
vizinho a informar a polícia? Será que havia de facto algum assalto? Francisco
sai do carro, e ergue-se no meio da rua perante o vazio. Com a mão direita
afasta os seus óculos de aviador e coloca-os dentro do carro. Inspira
profundamente. Estes momentos deixavam-no sempre ansioso e tenso. Afinal de
contas, tratava-se de uma situação de perigo potencial, e o suposto local do
crime encontrava-se a apenas alguns metros de distância.
A casa, um rés-de-chão simples,
com paredes brancas, tinha um pequeno jardim à frente. Francisco avançava na
rua, aproximando-se a cada passo daquele local misterioso, apoiando já a sua
mão junto à pistola carregada na sua cintura. Olhava fixamente para cada janela
da casa em busca de algum pormenor, algum registo de movimento que lhe
permitisse avaliar rapidamente que situação de risco enfrentava. Mas nada
via... nem um único barulho vindo da casa! Francisco percorre a rua, junto aos
carros estacionados, como se estes lhe servissem de escudo de proteção para
qualquer ameaça que pudesse vir ao encontro dele. A sua respiração acelera com
a crescente ansiedade. Está em frente da porta de entrada da casa, e vê a porta
entreaberta. Será que estará alguém dentro da casa? Na rua... ninguém. Olha
rapidamente em redor e observa as casas vizinhas. Não vê ninguém. Sente-se mais
ansioso que noutras situações, talvez pelo final de tarde quente e pelo
estranho silêncio numa rua onde nem um único carro passa diante de si. Decide
agir. Num ápice saca da sua arma e empunhando-a dirige-se para a porta da casa.
- Está alguém dentro de casa? -
grita, quando com a mão direita empunha a pistola e com a esquerda força
ligeiramente a abertura da porta.
Nada. Ninguém responde. Da casa
só sente silêncio. Nem cheiro ou odor diferente detecta.
- Se está alguém dentro de casa,
exijo saber já! - insiste, tentando obter algum género de resposta.
- Socorro! - é a resposta de uma
voz feminina, tímida, que ecoa desde os fundos da casa até à porta da entrada.
Num ápice, os músculos de todo o
corpo de Francisco contraem-se. O seu nível de atenção dispara, e as suas
pupilas dilatam imediatamente. O seu corpo está em alerta máximo, de modo a
enfrentar com a máxima rapidez todo e qualquer risco que possa surgir no
interior. Francisco aperta ainda mais a pistola que segura com firmeza. Avança
para o interior da casa avaliando cada centímetro do seu interior. A pistola
acompanha a sua visão avaliando rapidamente todas as divisões da cada que
vislumbra a partir da sua entrada. Um corredor à direita segue faz com que a
sala inicial continue em diante para outras divisões. Na sala não existe
perigo. Apenas os móveis, os sofás, a televisão grande e muita decoração.
- Socorro! - novamente, o grito
feminino, cada vez mais pálido, como se a pessoa já não tivesse forças...
Francisco aponta a arma para o
corredor, alinhando todo o seu corpo, num ápice, em direção da suposta zona
para onde terá de caminhar na procura do perigo. Passo ante passo, o seu corpo
encaminha-se para a entrada do corredor. A sua respiração aumenta. Gotas de
suor escorrem-lhe pela cara. Sente o calor deste final de tarde, já quase sem
luz, mas ainda com luz suficiente para perceber onde está e o que pode
enfrentar. Todo o seu corpo segue tenso. Ele sabe que pode estar mais alguém
dentro da casa. Sabe que tem de jogar pelo seguro e que não pode cometer erros.
A sua vida também pode estar em perigo.
- Não quero morrer... - a frase é
já pronunciada sem energia, e acompanhada por soluços.
A atenção de Francisco
concentra-se no final do corredor. É a zona da cozinha, alguém está na cozinha!
Francisco sabe que atravessar qualquer corredor é potencialmente perigoso. Em
qualquer uma das divisões, tanto à sua direita ou à sua esquerda, pode estar
alguém escondido, preparado para lhe fazer mal, para o atacar! A sua respiração
acentua-se. A sua camisa justa ao corpo evidencia as marcas da transpiração. O
suor abunda, fruto da ansiedade, mas isso não pode controlar. A sua boca está
seca, os lábios de Francisco saboreiam o ar seco que envolve toda a atmosfera
da casa. Mas Francisco prossegue. Tem de prosseguir. Pelo menos uma vida está
em perigo. Nem lhe ocorre chamar reforços ou pedir qualquer ajuda. Neste
momento, tanto o seu corpo como a sua atenção estão apenas concentrados em
defender-se de todo e qualquer risco ou ameaça que possa surgir e interferir
prontamente nesta situação, salvando as vidas que possam estar em risco. Avança
mais um passo em frente. Sempre encostado à parede do corredor, avalia as
possíveis ameaças que podem estar nas três portas que tem ao longo do corredor.
Serão quartos? Casas de banho? Apenas a última porta está aberta, as outras
duas estão fechadas. Francisco decide não perder tempo e avançar imediatamente
para a cozinha. É lá que está a voz que o inquieta. Faz apenas uma paragem
antes do final do corredor, apontando a arma para a última porta aberta do
corredor. Olha. Olha para o interior de um quarto que está iluminado por uma
janela com luz natural. Vê uma cama. Vê um armário. Mas não vê ninguém. Ali não
há ninguém. Novamente num ápice direcciona toda a sua atenção para a cozinha. A
cozinha que se encontra um metro à frente deste quarto, com um chão em cerâmica
cinza escura. Francisco segue com a pistola empunhada em frente. Entra na
cozinha e todo o seu corpo imediatamente contrai.
Uma mulher deitada no chão
ensanguentada, junto ao lava-loiças da cozinha. Ainda respira! Um homem sentado
ao lado dela segurando uma faca de cozinha. De olhos vidrados no chão. Com a
roupa, faca e mãos cobertos de sangue.
- Polícia! Afaste-se da faca e da
vítima e deite-se imediatamente no chão! - exige Francisco agora que tem a
leitura de todo o cenário do crime.
- Eu não sou capaz de a matar! -
responde o homem de cabelos negros, sentado ao lado da vítima no chão da
cozinha.
O cenário parece horripilante. A
mulher aparenta ter mais de 50 anos, com roupas simples, mas embebidas no
sangue fruto dos vários cortes que ela parece ter nos braços. Ao seu lado, uma
possa de sangue cobre o chão. A mulher deve ter um golpe mais profundo, talvez
na zona do abdomem. Francisco ainda não consegue perceber porque a mulher está
de barriga contra o chão. Os cabelos longos e escuros cobrem-lhe a face. Ela
está gravemente ferida, mas respira.
- Central, preciso de reforços
urgentemente, tenho uma mulher ferida em estado grave e um suspeito no local do
crime - diz Francisco agarrando com a mão esquerda o rádio que traz consigo,
enquanto com mão direita continua a apontar para a pistola na direção do
suspeito.
- EU NÃO SOU CAPAZ DE A MATAR! -
grita agora o suspeito do crime, deixando Francisco completamente boquiaberto
com a reacção impulsiva do homem que eleva a mão no ar com o gume da faca
apontado para o tecto da cozinha.
- Larga imediatamente a faca!
Para tua segurança larga a faca, se não sou obrigado a disparar - grita
Francisco novamente, visivelmente irritado com a situação.
- Ai sim? Então dispara! Mata-me!
- diz o homem, agora apontando a faca na direção de Francisco.
Nisto o homem levanta-se e põe-se
prontamente de pé. O homem aparenta ter 40 e alguns anos. Alto, pele branca.
Olhos de um azul marcante. Marcas de lágrimas estampadas na sua cara, mas
visivelmente inquieto, e com respiração acelerada. Os seus olhos não param de
tremer. O homem está ansioso! Completamente dominado por adrenalina, o seu
corpo está tenso e a sua caixa torácica expande-se largamente a cada
inspiração. Francisco mantém a pistola apontada ao peito do suspeito. Escassos
metros separam ambos. Três a quatro metros no máximo, o suficiente para
Francisco se sentir mais seguro numa situação em que a sua pistola defronta uma
faca de cozinha, mas onde sente o homem completamente descontrolado e inflamado
por um misto de emoções ainda impossíveis de descrever dado o momento.
- MATA-ME! - grita o suspeito
elevando a mão que tem a faca e apontando-a em direção a Francisco!
BAHMMMM! Um disparo é feito pela
pistola de Francisco e atinge o tórax do suspeito. A bala perfura a camisola
preta do individuo e um rasto de sangue é projectado para o ar. O sujeito deixa
cair a faca no chão e cai de joelhos no chão. Os grandes olhos azuis olham para
Francisco fixamente. O suspeito está agora à mercê da autoridade, derrotado,
inofensivo, e com uma bala cravada no peito. Cai com o peito no chão, e
Francisco rapidamente avança na sua direção, pontapeando a faca para longe do
suspeito, sacando as algemas e imobilizando prontamente o individuo que ainda
respira.
- Central, peço com urgência
apoio médico para o Bairro Azul, número 45, tenho duas vítimas com necessidade
de assistência médica urgente, uma delas é o suspeito do crime que se encontra
já imobilizado - avançou Francisco.
- Agente Francisco, as viaturas
de apoio já seguem a caminho e as viaturas médicas também. Deverão chegar ao
local dentro de cinco minutos. - explica a Central.
- Obrigado Central. Termino. -
diz Francisco quando coloca os dois dedos da sua mão direita junto ao pescoço
da mulher para lhe tentar medir a pulsação.
- Está a chegar a ajuda médica
especializada. Aguente-se, vamos tentar salvá-la. - diz Francisco para a
mulher, enquanto avalia o cenário dramático, como se procurasse alguma pista
sobre o que justificasse o crime que ali presenciara.
Que poderia ter levado um homem
aparentemente normal, talvez até de boa condição económica, a efetuar este
crime? A mente de Francisco iniciava um processo de procura de respostas que
sabia só ser possível colhê-las com mais tempo. Num último relance, Francisco
olha para ambas as vítimas. Será que ambos sobreviveriam? No decorrer de todas
estas questões, Francisco levanta-se prontamente com o som de diversas sirenes
a ecoar pelas ruas do bairro. Os reforços estão a chegar e a ajuda médica
também. O dia ainda será longo.
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