Francisco segue as ambulâncias em
direção ao hospital central da cidade, desta vez com as luzes e sirenes ligadas,
e a alta velocidade. Francisco olha para o relógio e o ponteiro marca dez
minutos depois das oito. Francisco, ao atravessar a cidade, pensa em como mais
uma vez a sua vida está presa ao sabor da sorte. Ele imagina o que poderia ter
acontecido se o homem tivesse uma arma de fogo, em vez de uma faca. Ou se em
vez de um só homem fossem mais. Se a sua família morreu de problemas de saúde,
Francisco sentia muitas vezes que seria a sua profissão a levar-lhe a sua vida.
Era provavelmente uma questão de tempo. Para já, sobrevivia mais um dia. E era
assim que sabia saborear a vida. Dia após dia, com cada dia a ser mais uma
conquista para si.
Aproxima-se a passos largos do
hospital central. Nas duas ambulâncias à sua frente seguem a vítima e o
suspeito do crime. A vítima tem uma perfuração no abdómem, provavelmente funda
e ainda não é possível avaliar se existe perfuração de algum dos órgãos
internos. A ferida é grave o suficiente, pois alguma veia ou artéria poderá ter
sido cortada, dado que a vítima havia perdido muito sangue. Já o suspeito fora
baleado por Francisco. E essa imagem do ferimento de bala provocado, começava a
adensar-se na mente de Francisco. Será que poderia ter evitado o disparo? Será
que o homem sobreviveria? Precisava que sim. Que sobrevivesse. Afinal, eram
muitas as questões que lhe tinha para fazer. Francisco precisava solucionar o
caso e não tinha conseguido ainda arrancar uma única palavra nem à vítima nem
ao suspeito.
Já se fazia noite. O hospital era
um edifício imponente perfeitamente iluminado. As duas ambulâncias estacionaram
em frente da porta das urgências hospitalares. Na primeira ambulância, os
paramédicos retiram o suspeito do crime que é encaminhado prontamente para o
interior do hospital, sendo transportado numa maca. Da segunda ambulância é
retirada a vítima que também é encaminhada para o hospital.
- Agente Francisco ambos os
traumatizados vão ser encaminhados para o bloco operatório – afirmou o chefe da
equipa de enfermeiros dirigindo-se ao carro de Francisco.
- Agradeço informação, mas
necessito de mais dados sobre a possível intervenção e recuperação de ambos os
indivíduos. Ainda hoje é necessário avançar com o interrogatório preliminar.
- Isso não lhe posso avançar.
Apenas o chefe da equipa de cirurgia, e após o final da intervenção.
- Então que posso eu fazer? –
retorquiu Francisco.
- Pode entrar e aguardar pela
conclusão da intervenção cirúrgica. Aí, alguém lhe dará mais pormenores,
certamente.
- Muito bem, eu irei aguardar. –
finalizou Francisco.
Já com ambos os feridos
encaminhados para o bloco operatório, Francisco avançou para dentro do
hospital. Um edifício hospitalar como qualquer um outro com a azáfama
tradicional de um final de dia e ainda com as urgências em pleno funcionamento.
Algumas pessoas aguardavam sentadas pelo seu momento de intervenção. No meio
daquela sala de espera, Francisco assistiu a tudo. Pessoas com ligaduras a
esconder feridas. Uma senhora já de idade sentada, sozinha numa cadeira de
rodas, abandonada aguardando sabe-se lá pelo quê. Uma criança chorando nos
braços da sua mãe, com um braço visivelmente traumatizado, fruto de alguma
queda que a terá condicionado. Outros apenas aguardando, tensamente, a chegada
de novidades. Um casal de meia idade, que chorava desalmadamente, sentados e
abraçados, como se não existisse mais alguém naquela sala. Enfermeiros e
pessoal administrativo, a falarem, a correrem, a atenderem telefonemas. E um
cheiro a desinfetante que deixava qualquer um atabalhoado.
Sem dúvida que Francisco
precisava sair dali. Toda aquela azáfama, cheiros e emoções pelo ar o estavam a
deixar inquieto e desconfortável. Talvez por Francisco ter um certo pânico a
ambiente hospitalar. Talvez por Francisco se recordar de todas as vezes que
havia entrado em hospitais. Com a sua mãe… com o seu irmão… e com o seu pai.
Foi nos hospitais que Francisco sentiu as maiores dores da sua vida. Sentiu que
de facto conhecia bastante o local mais paradoxal da existência humana: o local
onde tanto nascemos como morremos. Onde temos esperança em conseguir seguir uma
vida melhor e recuperar de infortúnios acontecidos no decorrer da nossa vida
normal, como esse mesmo local nos pode facultar as piores notícias possíveis e
condicionar severamente a nossa vida. Como quando recebeu a notícia de que sua
mãe havia sido diagnosticada com um tumor no peito. E que notícia horrível para
toda a família… Um sentimento de calor inundava Francisco naquele momento.
Sentia-se revoltado com aquele local. E apenas pensava em sair dali.
Nisto, o seu telefone começa a
tocar e a vibrar. Francisco retira o aparelho do bolso das suas calças, e
dirige-se para a porta de saída das urgências. Olha para o visor e vê o nome
“Artur”. Que alívio! Uma chamada do seu melhor amigo, mesmo a calhar.
- Está Artur! – diz Francisco com
a maior das satisfações – que prazer enorme em te ouvir.
- Olá Francisco! – retribuiu Artur – Onde estás?
- Apanhaste-me no melhor momento!
Estou no hospital central.
- Estás no hospital? Como assim? Que te aconteceu? – questiona Artur
com a voz tensa e inquieta.
- A mim não me aconteceu nada! –
responde Francisco - Apenas tive de deslocar-me ao hospital com duas vítimas
com ferimentos graves. Nem vais acreditar no que aconteceu!
- Conta Francisco! Quero saber!
- Foi hoje, ao final da tarde,
fui chamado para um suposto assalto numa residência. Apanhei o suspeito ainda
armado com uma faca de cozinha ao lado da vítima. Não posso dar muitos mais
pormenores, mas posso dizer-te que acho que cheguei no momento certo.
- Bem… mas que aconteceu Francisco? Tentaram agredir-te?
- Não, eu estou bem. A situação
foi muito caricata. Mas imobilizei o homem e retirei-lhe a faca. Depois tive de
chamar reforços e as equipas médicas.
- Mas estás bem, não estás?
- Sim, sim, isso estou. Estava só
a sentir-me mal por estar dentro do hospital. Sabes o quanto detesto hospitais,
não sabes?
- Sim, compreendo. Queres que vá ter contigo?
- Não, não vale a pena amigo. Eu
ainda tenho de ficar aqui, tenho de interrogar ainda esta noite a vítima e o
suspeito do crime.
- Que pena Francisco. Bolas! Ia desafiar-te para bebermos um copo.
- Hoje não vai dar… desculpa, mas
tenho de ficar aqui.
- Epah, compreendo. Mas queria muito contar-te uma coisa!
- Podes contar Artur! Eu tenho
tempo.
- Francisco, nem vais acreditar no que me aconteceu hoje, mas finalmente
consegui falar com ela!
- Com a tua apaixonada do
trabalho?
- Exato!
- Fantástico garanhão! Conta lá
essa história!
- Descemos juntos no elevador. Começámos a falar, e eu estava tão atrapalhado
Francisco. Mas não estás bem a ver… eu estava com o coração aos pulos, porque
ela hoje estava… linda de morrer!
- E? – insistia Francisco,
entusiasmado com o decurso da história
- E olha, ela começou a sorrir para mim, eu comecei a dizer-lhe que não
tinha jeito nenhum para falar com mulheres, e nisto ela convida-me para jantar
amanhã com ela!
- Bem, Artur, seu garanhão! Até
parece que foi fácil!
- Nem quero acreditar Francisco! Estou nas nuvens!
- Sim, senhora! Que tigre que
saíste Artur. Então amanhã vão encontrar-se?
- Parece que sim. Estou tão feliz Francisco.
- Meu amigo, tu mereces.
Ambos eram amigos de longa data.
Mais de 15 anos de amizade e de histórias partilhadas entre si. A amizade de
ambos era sólida como uma rocha. Artur era confidente de Francisco e
vice-versa. Mantinham a política sagrada de tudo contarem um ao outro. E de
nada esconderem. Viviam uma amizade sincera e isso era suficiente para ambos.
Todas as carências emocionais, fossem familiares ou relacionais, eram muitas
vezes compensadas com uma cerveja, uma saída à noite ou um jogo de futebol.
Coisas típicas de homens, que bastam fazer para que se esqueçam os infortúnios
da vida.
- Obrigado Francisco! Não sei porquê, mas acho que esta é a única mulher
que me fará esquecer a minha anterior relação.
- Meu amigo, pela forma que tu
falas dela, eu tenho a certeza que pelo menos tu estás apaixonadíssimo por ela.
Tem apenas cuidado para gerires as emoções, porque já sei quando a expetativa é
quebrada, tu acabas por sofrer.
- Claro. Eu sei disso Francisco.
- Artur, mas vai em frente! Agora
tens de explorar o que sentes de facto por ela. Amanhã leva-a a um sítio giro.
- Claro que vou levar Francisco. E até já sei onde.
- Amanhã é sexta-feira, isso joga
a teu favor Artur. Ela escolheu a sexta-feira por algum motivo.
- Também já pensei nisso. Mas vamos ver.
- Claro amigo. Vai correr tudo
bem.
- Espero que sim Francisco.
- Artur, tenho de desligar.
Necessito saber mais informações e já passou algum tempo.
- Ok Francisco! Vai lá. Falamos depois. Um abraço.
- Abraço para ti Artur!
A chamada é desligada. Francisco
suspira e esboça um sorriso. É impossível não sentir um certo orgulho do seu
amigo. Ele já andava há algum tempo a falar da nova colega no escritório. E
agora surge com esta notícia! Que bom para o Artur! Ele merecia alguém que
gostasse realmente dele. Mas Francisco suspeitava que uma mulher tão atraente
como aquela que Artur descrevia não seria fácil conquistar ou manter…
Francisco era um típico
mulherengo. Tinha muito mais sucesso com as mulheres que qualquer um dos seus
amigos. Um agente da autoridade, em absoluta e visível forma física. Um homem
calejado por diversas situações de perigo, e blindado emocionalmente aos
dissabores do amor, talvez pela frieza com que encarava esses mesmos
dissabores. O amor de uma mulher era algo que o atraía, mas com todas as perdas
que Francisco já havia sofrido, ele próprio não procurava uma mulher qualquer.
Francisco procurava a sua mulher. A mulher que pudesse criar uma família com
ele. Uma família. Era tudo o que Francisco mais queria naquele momento. Este
desejo contribuiria para que Francisco pudesse compensar toda a sua dor, muitas
vezes incompreendida pela maioria das mulheres. Francisco não era um homem como
os outros. Habituado a batalhar pela vida daqueles que amava, Francisco foi
forçado a crescer muito rapidamente. As mulheres da sua idade, tipicamente eram
bem mais imaturas que ele. E não o satisfaziam do ponto de vista emocional.
Francisco achava que a maioria das mulheres não estava preparada para sofrer. E
que sem essa capacidade não conseguiriam criar uma família. Pelo que as suas
relações eram curtas. Muito curtas. Vezes e vezes sem conta não passavam de uma
noite apenas. Por vezes mantinha mais alguns encontros com as mesmas mulheres.
Ora dormia em casa delas… ora elas dormiam em sua casa. Divertia-se, sem
dúvida. Mas não era capaz de as amar. Até porque acabava muito facilmente por
se desligar naturalmente, e as mulheres, não compreendendo isso, acabavam por
insistir e ir atrás dele. Era aí que ele perdia o interesse. Quando mulheres
que não sendo capazes de compreender a sua dor… o perseguiam com a ansiedade de
o terem de conquistar… ou garantir.
O tempo seguia o seu percurso
normal e Francisco olhava para o relógio da parede. O ponteiro já marcava vinte
minutos depois das nove. Estava naquele hospital já fazia mais de uma hora. A
sala de espera mantinha o seu movimento habitual. A senhora idosa da cadeira de
rodas já ali não se encontrava. O casal que antes chorava desalmadamente agora
estava sereno. Mas o cheiro a desinfetante… esse mantinha-se ali. E que cheiro!
Típico cheiro de hospital.
Enfermeiros de um lado para o
outro. Telefone a tocar vezes e vezes sem conta. E de vez em quando gente que
entrava e saía pela porta das urgências, ou ambulâncias que estacionavam para
deixar mais um ferido, mais uma vítima, mais um necessitado. O ambiente de
hospital é assim mesmo: um local onde o tempo se traduz em vida. E onde a vida
pode continuar ou findar em qualquer momento do tempo.
- Agente Francisco, boa noite!
- Boa noite! – responde
Francisco, que é apanhado desprevenido pelo senhor barrigudo, com vestes de
cirurgião, diante dele.
- Podemos falar um pouco? –
insiste aquele que parece ser um cirurgião do hospital.
- Claro – saliente Francisco. –
Onde pretende falar?
- Acompanhe-me ao meu gabinete.
Os dois homens seguem para fora
da sala de urgências em silêncio. Francisco ainda não sabe bem quem é este
homem de meia-idade, estatura média, mas vestido como se apresentam os
cirurgiões de tantos hospitais. Desconfia que é um dos elementos da equipa de
cirurgia e que deverá ter novidades para si.
- Agente Francisco, pode entrar
para esta sala por favor. – diz o homem, segurando a porta.
Francisco entra. O homem entra de
seguida e fecha a porta.
- Não vale a pena nos sentarmos
porque serei breve sobre as novidades que lhe trago do bloco operatório.
- Muito bem Dr., sou todo ouvidos.
– avança Francisco, ainda analisando cada uma das rugas da cara do cirurgião,
numa tentativa de procurar traços ou sinais que lhe permitam nunca mais
esquecer daquela cara.
- Primeiro que tudo, as minhas
desculpas por não me ter apresentado. Sou o Dr. Xavier, um dos cirurgiões
chefes deste hospital e responsável pelas duas intervenções que ainda decorrem.
- Ainda decorrem? – expõe
Francisco levantando ambas as sobrancelhas em sinal de admiração.
- Sim, Agente Francisco. Ainda
decorrem.
- Mas existe alguma complicação.
- Bem, posso dizer-lhe que a
coisa não está nada fácil num dos casos.
- A vítima? – inquire Francisco,
cruzando os braços sobre o seu tórax.
- Não propriamente. – responde o
médico – O seu suspeito está em estado crítico.
Francisco é apanhado em choque. A
bala que disparou deixou o suspeito traumatizado ao ponto de o seu estado ser
considerado crítico. Francisco era tido como um ótimo agente. Mas Francisco
nunca havia matado ninguém. Nem era sua intenção naquele dia matar o suspeito.
Por norma, os polícias disparam para intimidar ou mobilizar. Francisco havia
ainda por cima tentado acertar-lhe no ombro, como tática de imobilização, mas a
bala ficaria alojada ligeiramente mais abaixo. A cena ainda estava bem presente
na memória de Francisco.
- Dr. conte-me pormenores
específicos – insiste Francisco, observando com cada vez maior atenção tudo o
que aquele homem tinha a dizer sobre este caso em concreto.
- Bem, o suspeito deu entrada com
uma bala alojada na parte superior direita do tórax. Creio que a bala foi
disparada por si, correto?
- Sim, disparei para imobilizar o
individuo. Ele estava segurando uma faca e visivelmente ansioso.
- Eu imagino que não o tenha
feito com outra intenção. Seja como for, o ponto é que a bala perfurou o pulmão
direito e rompeu uma veia. Aconteceu algo raro neste caso, que foi a formação
de uma hemorragia interna que condicionou gravemente o funcionamento do
organismo do sujeito. Posso dizer-lhe que mais meia hora e provavelmente o
homem tinha chegado sem vida ao hospital.
Francisco estava inamovível.
Sentia-se em choque ao ouvir estas palavras. Uma bala por si disparada poderia
ter findado com a vida deste homem.
- Dr. mas diga-me… há hipótese do
suspeito recuperar?
- Tudo depende das próximas 24 a
48 horas. Ele perdeu muito sangue devido à hemorragia interna. Nós preferimos
ser sempre cautelosos na avaliação destas situações, porque já tivemos casos
semelhantes em que perdemos as vítimas e outros em que as conseguimos
recuperar.
- E a mulher, Dr.?
- A vítima do sexo feminino está
estável. Estamos a terminar o procedimento cirúrgico, mas não vai conseguir
falar com ela hoje.
- Não mesmo?
- Não. Ela tinha uma perfuração
de cerca de 7 centímetros no abdómem, mas foi uma sorte não ter apanhado nenhum
órgão vital. A vítima apenas perdeu muito sangue mas recuperará, sem dúvida.
- E quando posso falar com ela?
Amanhã a partir da hora de almoço. Recomendo que ela fique as próximas doze
horas em vigilância, e deverá seguir-se um período de internamento de 72 horas.
Segunda-feira deverá ter alta – concluiu o médico.
- Bem Dr., julgo que já não estou
aqui a fazer nada.
- Sim, vá descansar. Amanhã de
certeza que tem muito para fazer a nível de relatórios sobre este caso. Se
tivermos novidades também o avisamos.
- Muito obrigado Dr., amanhã
passarei por cá.
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