- Meninos portem-se bem! Todos os
dias é a mesma coisa, vocês não param depois de jantar!
- Catarina, nós só queremos
brincar! – afirma uma criança magra, de sardas na cara, com uns olhos grandes,
negros e profundos.
- Pois mas vocês sabem que as
nossas regras dizem que depois de jantar, têm de ajudar a lavar a loiça,
arrumar a cozinha, limpar a sala e só depois podem ir brincar – afirma aquela
mulher, naquilo que parecia iniciar uma discussão acesa com os miúdos.
- Mas Catarina…
- Não há mas nem meio mas. Regras
são regras, e vocês vão para a cozinha acabar de lavar a loiça! – explode a
mulher.
- Catarina, não precisas falar
assim com os miúdos. Não percebo porque estás tão irritada…
- Inês não queiras compreender.
Estou saturada. Mato-me a trabalhar todos os dias, e todos os dias é a mesma
coisa. Estes rapazes dão cabo de mim. São a minha desgraça! – conclui Catarina.
A azáfama naquele dia era grande.
Inês tinha saído do trabalho e foi a correr para o lar das crianças ajudar a
sua irmã. Catarina, uma mulher mais velha uns três anos que Inês, era uma
mulher muito diferente de sua irmã. Cabelos longos, soltos e encaracolados
marcados por um castanho escuro vincado. Mais corpolenta que sua irmã, embora
com um corpo de fazer inveja a muitas mulheres, e com um temperamento também
mais violento, típico de quem muito trabalha e se esforça todos os dias para
cuidar dos seus, Catarina dirige uma ONG dedicada a acolher crianças retiradas
às suas famílias. As crianças de quem cuida, são vítimas de maus tratos, e
Catarina vive apaixonadamente o seu trabalho que é a sua vida.
- Sabes mana, eu compreendo isso
tudo, mas as crianças também não precisam de te ver explodir dessa maneira. Eu
própria estou admirada! – remata Inês.
- Tens razão Inês. Hoje não estou
bem. Estou super ansiosa. Não percebo o que se passa.
- Problemas com ele? – questiona
Inês, enquanto apanha o seu longo cabelo liso e o ata em rabo de cavalo com um
elástico.
- Não sei que te responder.
- Que se passa mana? Podes
contar-me! Sabes que os segredos que me contas ficam comigo.
- Deixa-me deitar os miúdos. São
quase dez horas e eles precisam de ir dormir. – afirma Catarina.
A casa é pequena mas acolhedora.
É um género de apartamento no centro da cidade, num prédio antigo com vários
quartos. As crianças dormem em quartos acompanhadas por mais um ou dois
colegas. Tratam-se todos por irmãos. Fazem parte do mesmo grupo e têm entre 6 a
12 anos. Existem rapazes e raparigas, e ao todo são 8 em casa, divididos por
três quartos. Na sala, a televisão está ligada onde alguns estão a aproveitar
para absorver todos os últimos minutos que o dia ainda lhes permite aceder.
Este é um dia como tantos outros. As crianças levantam-se cedo, pelas sete
horas da manhã. Tomam um duche rápido, comem o pequeno-almoço e seguem para a
escola. Alguns têm atividades extracurriculares outros regressam a casa logo
pelas 16h00. Os que têm trabalhos de casa fazem-nos até à hora do jantar.
Outros lancham e brincam. O jantar começa todos os dias pelas vinte horas.
Catarina mantém uma rotina exigente desde que fundou a associação há mais de
oito anos. Era ainda nova, mas visionária. Trabalhou pouco tempo depois de sair
da faculdade. Nunca se sentiu bem em nenhum dos trabalhos que teve. O mercado
de trabalho também estava difícil para quem vinha da área social. Poucos empregos,
mal pagos muitas vezes… Nem sempre a tempo inteiro. Catarina ia fazendo aquilo
que podia mas nunca se sentiu realizada. Nunca… Achava que a vida que levava
não era para si. Procurou um plano para mudar radicalmente o seu destino.
Procurou e decidiu arriscar. Montou um projeto para abrir um centro de
acolhimento para crianças carenciadas e vítimas de maus tratos. Encontrou um
apartamento, uma casa que conseguiu arrendar a baixo custo, num prédio velho.
Apetrechou a casa com a ajuda de amigos e com algum dinheiro que tinha poupado.
Estabeleceu parcerias e protocolos. Conseguiu não pagar eletricidade. Recebia
alimentos gratuitos e fechou acordo com o Governo para ser reconhecida como
instituição de utilidade pública. Passou a receber financiamento por cada
criança que recebia.
O seu projeto pedagógico era
ambicioso. Providenciar um melhor futuro às crianças criando condições para uma
maior sustentabilidade e autonomia das mesmas. Queria expandir-se para mais um
apartamento e criar condições para continuar com as crianças até ao final da
escolaridade obrigatória. Queria que as crianças estivessem consigo o mais
tempo possível. Até atingirem a idade adulta. Afinal… as crianças eram suas.
Era Catarina que as protegia, que cuidava delas. Quase sem apoios e ajudas de
ninguém. Tirando a sua irmã, Inês. Que nem sempre aparecia, mas que quando
ajudava, ajudava com todo o gosto. Era um desafio para ambas. Principalmente
após a perda dos pais num acidente de viação. Já tinha passado algum tempo, mas
era um facto que marcava ambas de forma profunda.
- Catarina, a loiça está lavada,
a cozinha limpa e a sala também – referiu um rapazinho pequenino de cabelo
farto, que usava uma camisola às riscas grossas, azuis escuras e brancas,
alternadas.
- Obrigado Rodrigo. Mereces uma
beijoca! – diz Catarina, levando os seus lábios na direção das bochechas
rechonchudas do Rodrigo – Gosto imenso de ti meu menino.
Nisto, o menino abraça-a com
ternura, envolvendo com os seus braços delicados. Inês emociona-se olhando para
a figura de ambos com grande paixão. Via neles o amor de uma mãe e de um filho,
que não sendo nem mãe nem filho podiam ser como tal. Uma criança tem de ser
amada por aquilo que é. É a mais pura forma de amor. Ninguém espera que a
criança faça mais do que retribuir todo o amor que lhe é dado com um sorriso ou
um abraço. E quando isso acontece, o nosso coração derrete-se. É impossível não
se derreter, quando uma criança nos abraça. Nos toca. Ou nos diz que gosta de
nós. É este amor incondicional que as irmãs partilham com as crianças.
Especialmente Catarina, que lidera o projeto, construindo-o do nada. Inês olha
novamente para ela. Catarina abraça e embala o Rodrigo. A cena é tão comovente...
- Catarina, tu sabes que darias
uma ótima mãe – afirma Inês com aquele sorriso rasgado que a caracteriza,
sentindo um profundo orgulho da sua irmã, enquanto as lágrimas lhe escorrem
pelo rosto.
- Inês, eu já sou mãe destes
meninos há muito tempo. Tu sabes que eles são tudo para mim.
- Eu sei mana. Mas tu também
sabes o que quis dizer. – reafirma Inês.
- Eu sei, sim. Já vamos falar.
Deixa-me deitar os miúdos. – finaliza Catarina.
Catarina encaminha os meninos
para os seus quartos. Rodrigo vai de mão dada com ela. Ela nunca o diz, mas
Inês e talvez as outras crianças saibam que Rodrigo é o preferido. Tem 7 anos.
Foi acolhido em casa de Catarina após ser retirado à mãe que havia ficado
desempregada e sem condições económicas para sustentar o filho. A mãe também
fora acusada pela Segurança Social e pelo Tribunal de abusar com maus tratos e
agressões físicas a criança. Como tantos outros casos que por ali já passaram
no decorrer do projeto. O menino perdia a proximidade com a sua mãe biológica…
mas ganhava outra mãe disposta a dar-lhe tudo por ele: Catarina.
- Durmam bem meninos! – diz
Catarina a todos despedindo-se enquanto desliga a luz do quarto.
- Boa noite Catarina! – respondem
os meninos do primeiro quarto.
Catarina avança para a segunda
porta, desta vez onde se encontram três raparigas, ainda a conversarem umas com
as outras e de luz acesa no quarto.
- Meninas, entrem nas camas por
favor. Está na hora de irem dormir – insiste Catarina.
As meninas entram nas suas camas
e despedem-se de Catarina. Catarina desliga a luz do quarto e fecha a porta.
- Agora é a tua vez Rodrigo! –
diz Catarina, já com o menino ao colo, e dando-lhe mais um beijo na cara.
No último quarto existem apenas
duas camas. Uma para Rodrigo e a outra para o Filipe, outro menino que já
dorme. Catarina tira a roupa a Rodrigo e veste-lhe o pijama. Afaga-lhe
amavelmente o cabelo. Beija-o com ternura e dá-lhe um abraço.
- Gosto muito de ti, meu anjo. –
refere Catarina. Dorme bem.
- Dorme bem mamã.
Os olhos de Catarina
automaticamente se enchem com água. Duas grandes lágrimas caem a seu tempo e
escorrem-lhe pela face. É impossível uma mulher não ficar comovida quando houve
uma criança tratá-la por “mãe”. Especialmente quando essa criança não é sua.
Catarina tem dado tudo por estas crianças. E tem lutado com todas as forças
pela sobrevivência deste projeto. Estas são as suas crianças. E Rodrigo é o seu
filho preferido. Mesmo que não seja filho biológico, Catarina dá-lhe todo o
amor que acha que nunca recebeu de seus pais, em especial aquele que faltou
após o trágico acidente de viação.
Catarina levanta-se e desliga a
luz. Sente o coração tomado de alívio, por breves instantes. Vai até à sala
onde está Inês. São dez e vinte da noite. Começa a fazer-se tarde.
- Inês não preferes ir descansar?
– pergunta Catarina.
- Mana, acho que tens uma
explicação para me dar. O que se passa contigo?
- Não quero falar disso.
- Queres sim. Sabes que de mim
não me escondes segredos. Sou tudo o que tens da tua família biológica. Se não
estamos unidas, nada sobra.
- Sim, tens razão Inês. Desculpa.
Eu estou de cabeça perdida. Ele hoje não me disse nada todo o dia.
- Discutiram outra vez?
- Discutimos. Ele não compreende
as minhas necessidades. E depois dá nisto.
- Catarina, eu sei que tu não és
capaz de te entregar a um homem… e sei que ele deve estar a sofrer por isso.
Mas que vais fazer tu?
- Eu pedi-lhe uma prova de amor
inequívoca. Ele tem dito que gosta de mim… que quer ficar comigo… mas ao mesmo
tempo continua a viver com a mulher e o filho.
- Catarina, já falámos sobre
isso. O pobre coitado não tem tido grandes hipóteses contigo.
- Eu sei Inês. Mas também não me
sinto bem em andar com um homem casado, e em especial com um filho pequeno.
- Mana, se queres a minha opinião
sincera, é assim: o Fernando é um homem maravilhoso. E ainda por cima está a
sofrer por ti. A tua prioridade tem sido a instituição. Ele quer ficar contigo.
Tu mal tens tempo para ele. Decide-te se o queres magoar mais ou se o libertas
já. Eu conheço-te, vais prejudicar a família dele e no final não vai dar nada
entre ti e o Fernando.
- É isso que eu acho Inês. E
também vou ser sincera. Desde a chegada do Rodrigo que o meu desejo em ser mãe
está saciado.
- Eu vejo isso Catarina. Liberta
o Fernando da dor. Diz-lhe que não dá mais e ele que siga com a sua vida.
- Eu já fiz isso. Antes de tu
chegares, enviei-lhe mensagem para o telemóvel a dizer que não nos voltaríamos
a ver mais e que tudo ficaria por aqui.
- Fizeste mesmo isso Catarina?
- Fiz.
- Tenho orgulho em ti mana.
- Não tenhas Inês. Temo que só
causei sofrimento ao Fernando.
- Mas porque dizes isso?
- Ele nem me respondeu. Tenho
receio que ele tenha feito algum disparate e daí não me responder.
- Catarina, olha para mim: o que
já foi já foi. Tu deves continuar em frente. Deixa o Fernando ficar com a sua
família. Tu tens-me a mim e aos teus miúdos.
Catarina sorri discretamente.
Olha Inês olhos nos olhos, ficando admirada com a frieza da irmã. Catarina sabe
que a vida não tem sido fácil para ambas. Não foi fácil com os pais. Não tem
sido fácil com os homens. Os homens não as compreendem. Tem a certeza que os
homens querem todos o mesmo. Querem estar consigo mais pelo seu corpo e pelo
prazer de noites tórridas de paixão, desenfreada e selvagem, do que por aquilo
que ela sabe que representa e é como mulher.
Não acredita nos homens desde os
primeiros namorados do liceu. Desenvolveu-se cedo e tinha um corpo com curvas
bastante avultadas. O seu temperamento era já volátil, pelo que cedo se afastou
dos colegas da sua idade, procurando compensar-se naqueles em quem via um
espírito mais protetor. Aos 16 anos entregou-se pela primeira vez. E logo a um homem
mais velho. Muito mais velho. Foram sempre os mais velhos que conseguiram
captar a sua atenção. E por isso foram também estes os que mais a magoaram. Mas ela
confiava no seu corpo. Na sua atitude decisiva para os conquistar. Fazia
loucuras com eles, dando-lhes tudo o que eles quisessem. Quando quisessem. O
seu corpo não tinha segredos para eles. Era uma via verde de passagem.
Principalmente, para todos aqueles que tinham mulheres. Catarina adorava
destruir relações, principalmente das mulheres que se achavam felizes com os
homens que tinham. Para Catarina, nenhuma mulher podia ser mais feliz do que
ela. Não porque ela fosse de facto feliz. Mas porque a vida não lhe tinha sido
benéfica. A vida havia-lhe proporcionado bastantes dissabores...
Agora que olhava para Inês sabia
que tinha de parar. A irmã chamava-a à terra. Fernando era um bom homem. Mas
era mais um. Um dentista de sucesso na cidade. Casado. Vivia com sua mulher e
tinham um filho em comum. Conheceram-se ambos numa visita de Catarina ao
consultório de Fernando. Afinal, Fernando era especialista em dentição
infantil. Fora lá com um dos seus meninos. E como é óbvio, não estranhou quando
no dia seguinte lhe chegou a mensagem de Fernando ao telemóvel. “Desculpe
incomodar, mas apenas queria saber se o David apresenta alguma queixa. Um
cumprimento, Fernando”. Mais uma mensagem “inocente”, mas sem inocência
nenhuma. Ela sabia o que Fernando queria. Queria uma desculpa para a contactar
a ela. A ela! Não queria saber nem do David… nem do Rodrigo… nem do Filipe… nem
queria saber dela. O Senhor Doutor Fernando, homem com os seus 40 e poucos
anos, queria apenas uma coisa: queria envolver-se com ela e fazer amor. Amor
louco.
Da primeira mensagem ao primeiro
encontro, passaram somente dois dias. Para quê esperar mais? Afinal uma mulher
também tem de alimentar-se. Especialmente uma como Catarina. Fernando havia ido
buscá-la ao apartamento. As crianças naquela noite ficariam com Inês. Catarina
preparou-se ao pormenor para um momento que saberia ser seu. Fernando estava conquistado,
e apenas tinha sido necessário dizer-lhe aquilo que ele queria ouvir. “Gostei
de ti quando te vi”. “Sonhei hoje contigo”. “Gostava de te ver mais logo”. Em
troca, Catarina recebeu juras e promessas. O típico. “Quero estar contigo
sempre”. “Estou sempre a pensar em ti”. “Logo jantamos os dois”. Quando um
homem leva uma mulher a jantar, o homem está a declarar o seu interesse. E a
mulher quando aceita, também. Mesmo que seja tudo um jogo de falsas aparências,
neste caso não foi. Catarina e Fernando nem acabariam por jantar. Ela entrou no
carro dele a matar. Ele era um homem de facto bonito. Moreno. Com um olhar
lindo de morrer. E apesar dos seus 40 e poucos anos… tinha um corpo tonificado.
Duro.
Catarina abriu os seus lábios e
deixou que Fernando a tomasse. Ambas as línguas se envolveram mesmo ali, diante
da porta do prédio. Catarina usava um vestido vermelho naquela primeira noite.
Sabia o que aconteceria a partir dali. Saciaria a fome de Fernando, e ele
saciaria a sua fome. A partir de então, seria o que fosse, mas provavelmente seria
mais do mesmo: Catarina ficaria cansada de Fernando, como ficou de tantos
outros homens mais velhos, que apaixonados pelo seu corpo deslumbrante, apenas
queriam o que os homens tanto querem: sexo.
- Sabes Inês, nunca pensei dizer
isto, mas acho que gosto mesmo do Fernando.
- O quê? Catarina, é a primeira
vez que te oiço dizer que gostas de um homem! – afirmou Inês corada e
incrédula, olhando para a irmã.
- Tu estavas a falar, e eu estava
a pensar nele. Ele foi o único homem que acho que fez tudo por mim. – completa
Catarina.
- Mas se achas isso, mana, então
porque lhe enviaste a mensagem?
- Porque eu não quero que ele
sofra mais. E eu só faço os homens sofrer! – diz Catarina a desfazer-se em
lágrimas, enquanto os seus pensamentos ainda estavam com a história de
Fernando.
Era o momento de recordar. Sempre
que uma relação acaba, normalmente as partes recordam os momentos marcantes. E
estava a ser assim com Catarina. Talvez porque Fernando tenha sido especial. Um
homem que ela sabia estar profundamente apaixonado por ela. Um homem que tudo
havia feito por si. Tudo… menos uma coisa. Uma coisa estaria ainda por fazer. E
Catarina encontraria a prova que necessitaria sobre o amor de Fernando por si.
Sem comentários:
Enviar um comentário